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sábado, 9 de agosto de 2008

A vontade do eleitor não valeu



Veja Edição 2073 - Por decreto, Hugo Chávez coloca em vigor leis que os venezuelanos rejeitaram em plebiscito - mão com quatro dedos simboliza mutilação do direito de votar

Dois meses atrás, VEJA enfrentou o desafio de tentar entender súbitas mudanças de discurso do presidente venezuelano. Entre o radical que defendia com paixão as Farc e o presidente amansado, que aconselhou os narcotraficantes a depor armas, qual seria o Hugo Chávez sincero? A dúvida foi esclarecida na semana passada: em brutal demonstração de arrogância autocrática, Chávez colocou em vigor, por decreto, um pacote com 26 leis já rejeitadas pela população no referendo constitucional de dezembro do ano passado. O Chávez conciliador é uma mentira. Apenas o autocrata é sincero. Entre os decretos consta a criação de uma milícia em pé de igualdade com as Forças Armadas, mas diretamente subordinada à Presidência da República. Outro coloca o setor alimentício sob controle do estado, que poderá decidir até quais produtos serão enviados a cada região do país. Numa reedição tardia da fracassada economia centralizada soviética, o presidente se dá o direito de decidir que alimento deve ser produzido ou comercializado. O empresário que não quiser cooperar com o governo se arriscará a dez anos de prisão. "Trata-se de mais uma tentativa de Hugo Chávez de passar por cima da vontade popular", disse a VEJA o historiador venezuelano Manuel Caballero.

O pacote de maldades foi aprovado às pressas no último dia de vigência da Lei Habilitante, pela qual o presidente governou o país por decreto durante um ano e meio. Desde que Chávez assumiu o poder, uma em cada três leis foi aprovada dessa maneira, sem passar pelo crivo do Congresso. O texto completo das leis da semana passada só foi divulgado dias depois de sua promulgação. Já prevendo uma resposta contundente dos venezuelanos nas eleições para deputados, governadores e prefeitos marcadas para novembro, Chávez cercou-se de cuidados para não ser novamente derrotado nas urnas. Na semana passada, ele conseguiu que 272 candidatos, praticamente todos de oposição, fossem impedidos pelo Tribunal Supremo de Justiça, controlado por gente que ele próprio nomeou, de disputar as eleições. A justificativa é que são políticos processados por corrupção. Trata-se de uma arbitrariedade. Na Venezuela, como no Brasil, apenas as pessoas condenadas em última instância são impedidas de se candidatar – o que não é o caso de nenhum dos políticos da lista. Se, mesmo com essa rasteira, os chavistas perderem as eleições para governador ou prefeito, o presidente já sabe como remediar a situação: entre as leis aprovadas por decreto, uma delas dá a Chávez o direito de nomear autoridades regionais, dotadas de orçamento próprio e com poder superior ao dos governadores.

Um item da Constituição rejeitada que Chávez não ressuscitou foi aquele que trata de seu principal objetivo: o direito à reeleição indefinida. Ele preferiu a cautela, para que seu governo não seja internacionalmente visto como uma ditadura. Por outro lado, o projeto de impor o controle do estado sobre a economia venezuelana segue a todo o vapor. Chávez já nacionalizou empresas de eletricidade, telecomunicação, alimentos, aço e petróleo. Hoje, três em cada dez venezuelanos com carteira assinada trabalham para o governo. O Banco de Venezuela, do grupo Santander, o terceiro maior do país, deve ser o próximo da lista de estatizações.

As conseqüências do aumento da participação estatal na economia já se fazem sentir. As estatizações das empresas de telefonia e eletricidade deterioraram o serviço prestado à população. A capital, Caracas, voltou a sofrer com cortes de energia, algo que não acontecia havia três décadas. As estatizações afugentam os investidores: o risco-país da Venezuela é o mais alto entre os mercados emergentes. "Na tentativa de implantar um capitalismo de estado na Venezuela, o governo passa a atuar em setores nos quais as empresas privadas são mais eficientes e deixa de investir em áreas fundamentais para o país, como educação e saúde", disse a VEJA o economista José Guerra, ex-chefe de pesquisas do Banco Central da Venezuela.

A ofensiva de Chávez, que provocou protestos públicos em Caracas, não é suficiente para reverter uma tendência otimista: o aumento da resistência popular e institucional ao projeto autoritário na América do Sul. Desde sua derrota no referendo de dezembro passado, Chávez foi obrigado a fazer recuos em diversas áreas, como na tentativa de implantar um currículo marxista nas escolas e criar um estado policial nos moldes cubanos e no apoio dado aos narcoterroristas das Farc. Seus colegas populistas têm encontrado barreiras similares. O presidente boliviano Evo Morales convocou um referendo (marcado para o domingo 10) para confirmar seu cargo e tentar derrubar alguns governadores oposicionistas. Os protestos contra seu governo foram tão intensos que, na semana passada, não conseguiu visitar cinco das cidades mais importantes de seu país. Cristina Kirchner, da Argentina, teve seu projeto de aumento dos impostos sobre as exportações agrícolas rejeitado no mês passado pelo Congresso, com o voto decisivo de seu próprio vice, Julio Cobos. Com a popularidade no chão, ela agora se propõe a fazer o impensável: dialogar com os argentinos. No Equador, o presidente Rafael Correa teve de desistir da reeleição indefinida para aprovar sua nova Constituição, que será submetida a referendo popular no mês que vem. A queda de popularidade desses presidentes deve-se à falência de seus projetos políticos. "As promessas mágicas desses governos são desmentidas pelos péssimos indicadores sociais e econômicos que esses países apresentam", disse a VEJA o cientista político venezuelano Omar Noria, da Universidade Simón Bolívar, em Caracas. São os populistas mostrando sua verdadeira face.

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