Escrito por Alceu Garcia
Qui, 23 de Outubro de 2008 14:37
Um amigo censurou-me por escrever demais sobre marxismo, que para ele não passa de uma síntese de idéias bolorentas e ultrapassadas, cujo resíduo de influência nos assuntos atuais é desprezível. Discordando desse juízo, fiquei tentado, modestamente e salvo melhor juízo, a pôr no papel minhas impressões sobre essa corrente política para só então contraditar o argumento. Preliminarmente, é preciso definir marxismo. Segundo Marx e seus seguidores, o marxismo é filosofia, ciência e receita para a ação política. Para seus críticos, porém, não é uma coisa nem outra; é crença pseudo-religiosa e ideologia. Vejamos. Não se pode negar que o marxismo seja uma filosofia, visto que formula uma concepção estruturada, abrangente e coerente do real. A crítica tem razão, contudo, quando o qualifica como uma má filosofia ou mesmo antifilosofia. Proscrevendo a especulação metafísica, como Kant, Marx cria uma pseudometafísica da imanência, como Hegel, com o agravante de vetar a mera contemplação e reflexão – missão cumprida e definitivamente esgotada pelo próprio Marx – e exigir do adepto apenas a ação, a "práxis", a transformação de uma realidade já devidamente mapeada para sempre. É sintomático que nenhum dos sucessores intelectuais de Marx tenha ido além dele. Enquanto uns (Lenin, Trotsky, Stalin, Gramsci) cingiam sua obra à questão da implementação prática do comunismo, admitindo sem questionar os postulados substanciais marxistas, outros (Lukács, Benjamim, Marcuse, Habermas) renunciavam de vez ao impossível rigor importado da economia e "re-hegelizavam" Marx, protegendo-o da análise crítica com o manto místico, nebuloso e vago da "crítica cultural", o que implica numa confissão de impotência teórica e manifesto retrocesso em relação ao mestre.
Marx se orgulhava de ter revelado as leis do movimento histórico, como Newton o fizera em relação ao movimento dos corpos e Darwin descobrira as leis da evolução biológica. O marxismo seria ciência porque desenvolveu um método infalível, o materialismo dialético ("diamat"), capaz de fornecer a chave para a compreensão do passado histórico e para prever o seu futuro, que necessariamente se encaminharia para a emancipação final da humanidade por intermédio da ascensão do proletariado e a consequente superação da divisão e da luta de classes, bem como a libertação permanente do homem. Nesse ponto as pretensões dos marxistas se esboroaram completamente. A análise histórica marxista é decepcionantemente pobre e as previsões feitas com base em seus princípios e método erraram por muito. A base na economia política, fundamental para o marxismo como ciência, foi solapada irreparavelmente quando a teoria do valor trabalho foi refutada e ultrapassada pela descoberta da lei da utilidade marginal por Gossen, Jevons e outros, antes mesmo da publicação do primeiro volume de O Capital. Posteriormente, a crítica de Bohm-Bawerk, Pareto, Mises e Hayek desarranjou impiedosamente a economia marxista. A sociologia marxista fundada na oposição entre classes sociais comete o pecado científico de confundir conceitos diferentes, casta e classe, tomando o primeiro pelo segundo, sem jamais definir com rigor o que entende por "classe". A aspiração de ser a ciência definitiva da História sucumbiu ante os golpes críticos de Popper, por exemplo, que apontou a impossibilidade lógica de se fazer previsões históricas incondicionais inferidas de predições condicionais exaradas por sujeitos vinculados ao seu próprio tempo histórico, já que a história não é um experimento que possa ser controlado para que hipóteses possam ser enunciadas e testadas empiricamente.
A analogia do marxismo com um ersatz de religião faz sentido. Contudo, como numa farsa, ele reteve apenas os piores aspectos do fenômeno religioso. Como um profeta, Marx oferece ao iniciado um feixe de revelações inquestionáveis. Questioná-las significa negá-las, e negá-las significa pôr-se no campo demoníaco dos "reacionários". A despeito de ser um burguês puro-sangue, Marx, como um ser sobre-humano, pôde contrariar o seu próprio dogma de que a posição social do indivíduo determina a sua mentalidade e, colocando-se transcendentalmente fora e acima da sua própria condição social, divisar o motor da história, seu sentido redentor e sua finalidade libertadora. Aceita a Doutrina, não há mais dúvidas, reflexões nem indagações críticas. O crente é instado a agir rigorosamente conforme os mandamentos, obedecendo a uma hierarquia rigidamente estruturada. Como o islamismo após Maomé, o marxismo encontrou ardorosos apóstolos militantes capazes de espalhar a nova fé pelo mundo inteiro, chegando rapidamente a dominar metade do globo terrestre. O Partido construído por Lênin rivalizou com a Igreja em dimensão, influência e organização. A última palavra sobre questões fundamentais de doutrina ficavam a cargo do chefe do Partido. Discussões obscuras e complexas sobre a interpretação dos "textos sagrados" se desenrolavam infindavelmente. Cismas ruidosos engendravam acusações mútuas de heresia e perseguições impiedosas e brutais. Grupos descontentes constituíam "igrejas" rivais, cada qual reivindicando legitimidade exclusiva para falar em nome dos fundadores e da Doutrina Sagrada. No entanto, a fé invariavelmente se dissipava tão logo o paraíso prometido, ou pelo menos sinais tênues que fossem de seu advento, era contrastado com a triste realidade comunista. Incapaz de criar um sistema moral aceitável e uma ordem social duradoura, o marxismo "real" desabou com enorme rapidez. Mais impressionante do que a ruína econômica que deixou é o vazio moral e espiritual legado pelo comunismo. Para os povos que sofreram o seu jugo direto e absoluto, os anos marxistas não deixaram traços, salvo a apatia, o marasmo, o cinismo. Estranha filosofia da história o marxismo, que, tal qual um buraco negro absorvendo a luz, roubou e esterilizou as energias históricas de povos inteiros, exaurindo-o de tal modo que mesmo a recuperação da vitalidade e do movimento pré-comunista é uma tarefa difícil e lenta.
Da análise efetuada até aqui deduz-se o caráter ideológico do marxismo, sendo que "ideologia" deve ser entendida em termos marxistas. Em outras palavras, o que se segue é análise marxista dirigida contra sua própria matriz. Tratando-se de uma representação viciada da realidade fundada em enunciados há muito refutados categoricamente, bem como desmentida cabalmente pelo curso da experiência histórica, supostamente seu juiz supremo, o marxismo como doutrina política, filosofia e método científico já deveria ter sido definitivamente descartado. Entretanto, sua influência nesses três planos ainda é considerável. Se o marxismo é imprestável como instrumento analítico e a ação política dele derivada só pode acabar em becos-sem-saída históricos, por que ele ainda subsiste? Porque representa os interesses de uma casta, que os preserva impondo a falsa consciência do mundo que lhe convém sobre o imaginário de todas as pessoas. Essa intelligentsia, aboletada em sinecuras públicas e lucrativos cargos de prestígio na imprensa privada e nas universidades particulares em todo o mundo, não pode subitamente reconhecer que as idéias que defendeu durante décadas estão erradas, pois isso implicaria em perda de poder e riqueza. O marxismo é mais do que apenas o "ópio dos intelectuais", como escreveu Raymond Aron.
No Ocidente desenvolvido o marxismo já não é tão prestigioso, muito embora seu relativo eclipse não tenha sido efeito de uma renúncia consciente diante da refutação irretorquível, e sim do advento de novas modas intelectuais, não necessariamente melhores, como a filosofia "pós-moderna" de Gadamer, Derrida, Rorty e similares. O marxismo permanece como uma camada arqueológica sobre a qual outras falácias intelectuais se sobrepuseram. Muitos dos seus pressupostos ficaram entranhados como resíduos ideológicos no senso comum e nas ciências sociais, e ninguém se preocupa mais em desenterrá-los e confrontá-los com a crítica.Em países arcaicos como o Brasil, porém, a casta letrada, não contente com o imenso poder que já detém, ainda ambiciona o poder total, sonhando em fazer aqui a mesma revolução que fracassou inequivocamente em todo o mundo. Aqui Milton Santos é a referência suprema em geografia, os discípulos de Florestan Fernandes (como o "neoliberal" FHC) mandam na sociologia, centenas de sub-hobsbawns reinam nas cátedras de história, Marilena Chauí é tal na filosofia, os Sayads e Bressers dominam a economia temperando a gororoba marxista com o molho keynesiano e assim por diante. A Igreja Católica brasileira é o mais aguerrido reduto do mundo do marxismo ortodoxo travestido de "teologia da libertação"; o PT e o MST englobam e sintetizam com brilhante sucesso as táticas de conquista do poder político concebidas por Lenin, Stalin, Mao e Gramsci.Por tudo isso sou obrigado a discordar do meu prestimoso amigo: o marxismo é decerto um apanhado de idéias erradas e perniciosas, mas nunca foi tão influente e ameaçador, pelo menos no Brasil. Escrever sobre e contra ele é um dever para as poucas pessoas conscientes de sua atualidade e potencial desastroso.
Publicado originalmente em http://www.oindividuo.com/
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domingo, 15 de março de 2009
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